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GeraldoAzevedo:‘Eu gosto de desafios’

Prestes a completar 80 anos, o grande cantor, violonista e compositor repassa a carreira, parcerias e momentos-chave de sua vida, num papo com a Revista UBC em sua casa

por_Eduardo Fradkin do_Rio
fotos_arquivo pessoal

Geraldo AzevedoMudança de imagens do geraldo azevedo com artistas e amigos.
Prestes a completar 80 anos, o grande cantor, violonista e compositor repassa a carreira, parcerias e momentos-chave de sua vida, num papo com a Revista UBC em sua casa

por_Eduardo Fradkin do_Rio

Radicado no Rio de Janeiro desde 1967, o cantor, violonista e compositor pernambucano Geraldo Azevedo chega aos 80 anos, no dia 11 de janeiro, ainda se considerando um "cara da roça". Ele fala com carinho de sua Petrolina natal, especialmente de Jatobá, bairro onde passou a infância. Um motivo de orgulho foi ver suas canções mais famosas serem usadas para rebatizar várias ruas da sua vizinhança. Entre os títulos, estão "Dia Branco", "Moça Bonita" e "Beleza Agreste". Geraldo chegou a ir lá para filmar as vias e incluir as imagens num DVD. Mas chegou um pouco tarde.

O jovem Geraldo toca seus primeiros acordes nos anos 1950

Em Petrolina, Geraldo Azevedo dá nome a um tradicional festival de música que premia novos talentos anualmente. No ano passado, ele participou da festa de encerramento tocando com a Philarmônica 21 de Setembro, uma orquestra local. Lamentou não ter feito um registro em vídeo para um DVD, e acalenta a ideia de realizar o mesmo show novamente só para filmá-lo. No entanto, terá uma ausência dolorosa quando isso acontecer.

O maestro da orquestra, Fernando Rêgo, morreu em maio deste ano. Era um amigo antigo.

"Ele me convocou para a primeira banda na qual toquei, quando eu tinha 16 anos. A banda era a Sambossa. Fernandinho foi meu grande mestre. Eu o chamava de Pixinguinha de Petrolina", elogia Geraldo, que planeja uma turnê celebratória de seus 80 anos com início em abril.

"Deve ser coisa de fã... roubaram todas as placas. Não sobrou uma. Eu pedi recentemente ao prefeito para recolocá-las. Só me arrependo de não ter pegado uma para mim", diz ele, aos risos.

Um dos cômodos de sua casa no bairro carioca do Cosme Velho é decorado com uma placa de rua. Mas a homenagem é a outra pessoa, à vereadora Marielle Franco. Também chamam atenção no imóvel um ateliê construído para uma neta que é artista plástica e uma academia de musculação, onde o (quase) octogenário se exercita e faz aulas de muay thai.

Foi nessa casa que ele recebeu a UBC para uma conversa em que repassou momentos importantes de sua vida e sua carreira. E na qual dedicou boa parte do tempo a reminiscências que ajudam a explicar a relação tão próxima que sempre teve com grandes figuras da nossa arte.

Na juventude, por exemplo, Geraldo costumava fazer shows na cidade vizinha de Juazeiro, na Bahia. Lá, conheceu e ficou amigo de Luiz Galvão, do Novos Baianos.

"O apelido dele era Luiz Cachaça, vivia descalço, sempre foi doidão. Pouco antes de morrer, ele me deu uma letra para eu musicar. Mas não deu tempo", lamenta o pernambucano, que engavetou o poema por não se sentir à vontade para fazer cortes e modificações sem a aprovação do autor.

Ele cita exemplos de letras que editou e resultaram em grandes sucessos: "uma delas foi 'Moça Bonita', a primeira canção que fiz com (o poeta José Carlos) Capinam. Na letra original, dizia: 'imagino e perco o tino'. Eu achava que soava como 'percutindo'. Então, sugeri 'imagine o desatino', e ele aceitou". Um letrista com quem ainda sonha fazer uma parceria é Paulo César Pinheiro: "já tenho a música pronta. É um maracatu. Mas fico inibido de entregar para ele", confessa.

Depois de terminar o ginásio em Petrolina, Geraldo se mudou para o Recife, onde moravam um irmão e uma tia. Nessa etapa da vida, ganhou uns bons trocados dando aulas de violão e recorrendo ao seu talento como desenhista em uma empresa de engenharia. Depois disso, mudou-se para o Rio, onde inicialmente trabalhou com a cantora Eliana Pittman, até se ver forçado a voltar às pranchetas diante do recrudescimento da ditadura, após o AI-5. Passou dois anos e meio batendo ponto na Montreal Engenharia.

"Larguei de vez o desenho por volta de 1971, quando comecei a fazer coisas com o Alceu (Valença) e vi que a música daria pé", recorda-se.

PARCERIA PARA TODA A VIDA

A simbiose com Alceu deu tão certo que, até hoje, há espectadores nos shows de Geraldo que pedem sucessos do colega, como "La Belle de Jour" e "Anunciação". Geraldo não se incomoda e até tira proveito da situação. "Uma vez, fui comer em um quiosque e, quando pedi a conta, o dono falou: 'Alceu, aqui você não paga'. Respondi: 'tá certo!' e quase pedi um filé para arrematar", diverte-se.

Com Alceu, em foto sem data entre o fim dos anos 60 e meados dos 70

Alceu se lembra da primeira vez que viu Geraldo Azevedo, então um rapaz com pouco mais de 18 anos, já morando no Recife, onde passara a integrar o grupo Construção, ao lado de Teca Calazans, Naná Vasconcelos, Marcelo Melo e Toinho Alves. Numa das apresentações da banda na TV Jornal do Commercio, os olhos de Alceu fitavam a tela. A ponte entre os dois músicos seria construída anos depois, graças a um engenheiro.

"Meu irmão Decinho era amigo de Wilson Lira, um engenheiro do Recife que morava no Leblon. Um dia, ele me chamou para ir a uma festa na casa de Wilson Lira. Ao chegar lá, Geraldinho estava sentado no chão, tocando violão. Eu cursava Direito, mas já estava querendo ser cantor naquele momento. Quando Geraldo deu uma saidinha para ir à cozinha ou ao banheiro, eu peguei o violão. Toquei uma música, e Geraldinho falou: 'bicho, gostei!'. Ele me deu o seu endereço. No dia seguinte, eu estava agoniado. Saí da Rua Gustavo Sampaio 390 (no bairro do Leme) e fui diretamente para a casa dele, na Glória, a pé. Cheguei tão cedo que ele estava dormindo. Quando acordou, me mostrou a música 'Talismã', e eu fiz a letra na hora, em questão de dez minutos. Ali começou uma parceria fantástica", descreve Alceu.

Quando "Talismã" chegou à Divisão de Censura de Diversões Públicas, não agradou aos funcionários empregados pela ditadura, como lembra Geraldo.

"Essa música está no meu primeiro disco, que fiz com o Alceu Valença (lançado em 1972). A letra falava: 'Joana me deu um talismã... viajar'. Os censores acharam que era referência à marijuana e a viajar com drogas. A gente negociou e trocou o nome Joana por Diana. Aí, foi aprovada. Nesse mesmo disco, houve outra música censurada, 'Mister Mistério', porque eu fazia uma referência ao Tupamaros, o grupo guerrilheiro do Uruguai. Tive que mudar a letra, tirar essa palavra", conta.

MEMÓRIAS DO CÁRCERE

Antes disso, em 1969, ele havia sido encarcerado e torturado. A segunda prisão veio em 1975. Naquela época, já era reconhecido como autor da canção "Caravana" (em parceria com Alceu Valença), incluída na trilha da novela "Gabriela" e, por isso mesmo, foi submetido à humilhação de cantar e dançar nu e encapuzado para os agentes da repressão.

Num momento de descontração, em 1972

Eu sou fã do Geraldo Azevedo desde o surgimento dele em disco. “Eu me lembro de vender esse disco, e músicas como 'Novena' e 'Talismã' já me marcaram.

Chico César

"Eu nunca vi os rostos dos caras que me sequestraram e me torturaram na minha segunda prisão, porque eles colocaram um capuz em mim. Na primeira vez, em 1969, não foi assim. Foi cara a cara. Eu lembro de ver um sujeito cheirando cocaína antes de me torturar", relata. Ele comenta que gostou muito do recém-lançado filme "Ainda Estou Aqui", ambientado naqueles tempos sombrios, com uma ressalva: "é até comedido ao mostrar a violência que existia".

Não é exagero dizer que Geraldo gosta de estar perto de seus parceiros. Sua casa, um antigo convento de freiras ursulinas, fica na mesma rua em que mora Renato Rocha, seu cúmplice na criação de sucessos como "Dia Branco” e “Bicho de Sete Cabeças”. Os dois continuam compondo juntos e têm uma música em gestação neste momento, além de várias outras que não chegaram a ser lançadas.

"A gente gravou pouco mais da metade do que a gente tem", calcula Renato. "Das muitas qualidades do Geraldo, eu destaco a humanidade dele. Eu conheci muita gente antes e depois do sucesso, e o Geraldo é um que passou por isso sem mudar, sem se encastelar ou perder a simplicidade. Dos compositores nordestinos, tirando Caetano e Gil, ele é um dos que mais conhecem a música brasileira, não só a nordestina, a regional. Conhece Ary Barroso, a bossa nova, tem um repertório enorme. Além disso, ele é o maior acompanhador de plateia que eu conheço. Quando ele toca 'Dia Branco', por exemplo, todo mundo conhece e começa a cantar", observa Renato.

COM CHICO, UM ENCONTRO BONITO

Chico César e Geraldo Azevedo: parceria recente, admiração antiga
Chico César e Geraldo Azevedo: parceria recente, admiração antiga

Com o parceiro Chico César, Geraldo vem fazendo uma série de shows batizada de "Violivoz", que culminou num CD ao vivo. Chico elege seu momento favorito do dueto: "é a passagem de som. Ele chega e me abraça, cumprimenta os roadies e a equipe técnica. Aí, a gente começa a tocar os violões. Já no show, um dos momentos de que eu mais gosto é quando ele toca 'Paula e Bebeto', de Caetano Veloso e Milton Nascimento, e eu acompanho com a minha viola de doze cordas. É como se o adolescente que eu fui se visse ali, tocando a música que saía da vitrola, só que ao vivo, com seu ídolo".

A admiração de Chico vem de longa data.

"Eu sou fã do Geraldo Azevedo desde o surgimento dele em disco. O primeiro LP dele, junto com Alceu Valença, saiu em 1972, mesmo ano em que eu comecei a trabalhar numa loja de discos, a Lunik, em Catolé do Rocha (PB). Eu tinha 8 anos de idade”, recorda Chico. “Eu me lembro de vender esse disco, e músicas como 'Novena' e 'Talismã' já me marcaram, mesmo eu sendo criança. Tempos depois, eu o conheci através de um amigo comum, o Carlos Bezerra, que era chamado de Totonho. Ele ia fazer um disco e convidou o Geraldo a participar, cantando uma música minha. Geraldo aceitou, mas pediu: 'eu quero que o compositor venha, porque ele toca violão de um jeito muito especial'. Foi assim que ele prestou atenção no meu violão, que um dia se juntaria ao violão dele.”

Na sessão de fotos para o LP 'Tempero Tempero', de 1984

Geraldo atribui justamente à junção de violões o brilho dessa parceria, a mais trabalhosa de todas em sua carreira. "É um show que eu tenho muita satisfação de fazer. De todos os projetos que já tive, é o único em que entro no palco no início e só saio quando termina. Nos outros, toco um pouco, saio e dou lugar a outro artista. Com o Grande Encontro é assim. Foi também assim em um dueto com Zé Ramalho, numa temporada de um ano, que deu origem ao Grande Encontro. Quando eu e ele tocamos no Canecão, a Elba (Ramalho) e o Alceu (Valença) estavam na plateia, e o público ficou pedindo para eles subirem no palco. Ali, nasceu a ideia do Grande Encontro. É um show econômico demais, eu nem trabalho muito. Mas com Chico César eu entro e só saio depois de tocar todas as músicas, as minhas e as dele. É muito bacana ver um cantar a música do outro", confirma o artista.

Dois outros nomes que Geraldo sonhou ver interpretarem suas canções eram Gal Costa e João Gilberto, para sua frustração. João chegou a ensaiar "Inclinações Musicais", mas não a gravou.

"Eu me transformei em intérprete por causa disso. Sentia que não era fácil colocar a música... dizia-se 'colocar a música' com um cantor, naquela época. Você ficava na expectativa de que alguém gravasse a sua música, e era frustrante. E há de se convir que existe um sabor especial quando um compositor canta a própria obra", define.

Com a parceira de longa data - e amiga - Elba Ramalho
Com a parceira de longa data - e amiga - Elba Ramalho

PAIXÃO PELA SÉTIMA ARTE

O cinema é outra das paixões de Geraldo, que arregimentou os companheiros Elba e Zé Ramalho para gravar a trilha, composta por ele, para o curta "Recife de Dentro pra Fora", de 1997, mesmo ano em que foi lançado o álbum "O Grande Encontro 2", com os três, sem Alceu. A música tinha como base o poema "Cão Sem Plumas", de João Cabral de Melo Neto. A habilidade de Geraldo para escolher seus letristas, afinal, é inegável.

Dois presentes foram ofertados pela sétima arte ao músico petrolinense: um estético e um musical.

Eu nunca vi os rostos dos caras que me sequestraram e me torturaram na minha segunda prisão, porque eles colocaram um capuz em mim.

Geraldo Azevedo

"O (diretor) Sérgio Ricardo me deu um papel no filme 'A Noite do Espantalho'. O personagem, Severino, foi muito importante na minha vida. Eu não tinha barba, mas senti que o personagem precisava deixar a barba por fazer. Foram três meses de filmagens, e eu nunca mais tirei a barba", conta ele.

Em outra ocasião, foi contratado para fazer a trilha do filme "Vento Sul", mas o diretor José Frazão rejeitou uma das músicas compostas por Geraldo... tratava-se de "Chorando e Cantando", que acabou virando um sucesso de sua carreira. O trabalho para o audiovisual mostra uma faceta importante do músico, que, em 80 anos, nunca se acomodou: "criar um tema para uma cena é um desafio. E eu gosto de desafios”.

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