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“vivi

intensamente

a música”,

diz Fagner

Após lançar seu primeiro disco de inéditas em dez anos e um novo álbum em parceria com Renato Teixeira, ele já prepara seu próximo trabalho

por_Kamille Viola do_Rio
fotos_Daniela Dacorso

Fagner
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Após lançar seu primeiro disco de inéditas em dez anos e um novo álbum em parceria com Renato Teixeira, ele já prepara seu próximo trabalho

por_Kamille Viola do_Rio

Em agosto, Fagner lançou seu primeiro disco de inéditas em dez anos, “Além Desse Futuro”. O 38º álbum de sua carreira traz uma homenagem a seu primeiro, “Manera Frufru, Manera”, que completou 50 anos em 2023, na faixa “Amigo de Copo”, parceria com Jorge Vercillo. “É um disco importante, ele tem uma leitura diferente do que se vinha fazendo na música brasileira na época”, pontua o artista. Com produção de Roberto Menescal, arranjos de Ivan Lins e as participações de Nara Leão, do percussionista Naná Vasconcelos e do baixista Bruce Henri, estadunidense radicado no Brasil, o trabalho foi bem-recebido pela crítica da época e, até hoje, é considerado um dos pontos altos da carreira do cearense.

Embora esse tenha sido seu primeiro álbum, sua discografia solo teve início dois anos antes, quando a faixa “Mucuripe”, de Fagner e Belchior, foi lançada por ele no lado B do “Disco de Bolso do Pasquim Nº 2” (o lado A traz Caetano Veloso cantando “A Volta da Asa Branca”). A grande virada em sua carreira, no entanto, veio pouco antes, com a gravação de “Mucuripe” por Elis Regina, que, ao longo de sua trajetória, impulsionou as carreiras de muitos compositores.

Lamento não ter gravado com Elis. Mas é possível que a gente faça, estou combinando com João Marcello.

A música integrou o álbum “Elis”, que saiu em junho de 1972. Foi o primeiro disco dela após a separação do músico, compositor e produtor Ronaldo Bôscoli — Fagner, aliás, chegou a morar com os dois, na casa do casal na Avenida Niemeyer, no Rio. “Ser gravado pela Elis era incrível, dava uma visibilidade tremenda. Ela foi muito importante na vida de tantos cantores. Foi um sonho”, lembra o artista em entrevista na sua casa, no Rio, alguns dias depois de oficializar sua volta à UBC.

Quando conheceu Elis e Bôscoli, Fagner morava em um apartamento sem mobília em Copacabana: ele havia sido alugado por “dois ou três meses” por um primo dele, Fábio, que passou para medicina na França e foi morar em Paris repentinamente. “Não tinha cama, não tinha nada. Eu botava uma boia dessas de crianças, fininha. Comia nas Casas da Banha [finada rede de supermercado], de noite, escondido, de graça”, conta.

Mais novo dos cinco filhos do libanês José Fares Haddad Lupus e da cearense Francisca Cândido Lopes, Fagner nasceu em Fortaleza, mas foi registrado e criado em Orós, no interior do Ceará. A música foi uma paixão que herdou da família.

“A minha história começa com o meu pai, que era cantor no Líbano, e meu irmão Fares, que foi o maior seresteiro lá do Ceará”, conta ele.

Tinha apenas seis anos quando ganhou um concurso infantil na rádio local. Em 1968, venceu o IV Festival de Música Popular do Ceará com a música "Nada Sou", parceria sua com Marcus Francisco. Sua popularidade no estado foi crescendo, assim como a de conterrâneos como Belchior, Ednardo e Amelinha, que ficaram conhecidos como Pessoal do Ceará. Em 1970, foi estudar arquitetura na Universidade de Brasília (UNB) e ganhou o Festival de Música Popular do Centro de Estudos Universitários de Brasília, com a música “Nada Sou”. Em 1971, foi morar no Rio de Janeiro e, no ano seguinte, sua carreira deslanchou.

Um dia, ao levar o amigo em casa, Bôscoli quis entrar no lugar e, ao ver a situação de Fagner, convidou-o para morar com ele e Elis, onde o cantor ficou por cerca de três meses, até a separação do casal.

Mas a primeira pessoa que deu força a Fagner no Rio foi Ivan Lins. O cantor e compositor estava estourado — também devido a uma gravação de Elis, que havia incluído sua composição “Madalena”, parceria com Ronaldo Monteiro, no disco “Ela” (1971) — quando lhe estendeu a mão. Na época, o cearense costumava, assim como outros artistas, cantar na porta de gravadoras, em busca de um contrato.

“Ele me pegou nos corredores da Philips, no auge dele, do ‘Som Livre Exportação’ [programa de TV que Elis e Ivan apresentaram na Globo], me trouxe para a casa dele, nós ficamos parceiros, ficamos amigos. Até hoje a gente tem um carinho enorme um pelo outro. E eu tenho essa gratidão pelo Ivan. Inclusive, a primeira música que nós fizemos foi no piano da casa da Elis”, recorda ele, citando “Quarto Escuro”, lançada por Ivan no álbum “Quem Sou Eu?” (1972).

O MOMENTO DOS NORDESTINOS

Depois da explosão com “Mucuripe” e dos elogios da crítica a “Manera Fru Fru, Manera”, a carreira de Fagner seguiu de vento em popa. Em 1976, ao assinar com a gravadora CBS (onde gravou o álbum “Raimundo Fagner”), dirigida por Jairo Pires, fez um trato com Carlos Alberto Sion, então produtor: eles levariam para lá artistas nordestinos sem espaço no mercado fonográfico.

“O momento era perfeito, já que a CBS tinha tradição com os artistas da Jovem Guarda, movimento que a essa altura estava muito em baixa, e alguma experiência com música nordestina através de Dominguinhos e Marinês”, pontua a jornalista e pesquisadora musical Chris Fuscaldo, autora de livros como “Viver é Melhor que Sonhar: Os Últimos Caminhos de Belchior” (ed. Sonora), escrito com Marcelo Bortoloti. Foram lançados trabalhos de nomes como Zé Ramalho, Elba Ramalho, Amelinha e Cátia de França, além de outros discos de Fagner. “Por causa disso, apelidaram a CBS de ‘Cearenses Bem-Sucedidos’, mas a estratégia deu certo”, observa ela.

Roberto Carlos, certa vez, em um show de Fagner, perguntou a ele quando ele iria começar a cantar para o ‘povão’. O episódio o inspirou a compor a romântica “Revelação”, que integrou o disco “Eu Canto” (1978), até então seu álbum de maior sucesso comercial. Ao longo de sua carreira, Fagner viu a imprensa se virar contra ele justamente quando começou a atingir mais público. Ele conta que não foi fácil lidar com a desaprovação.

Compor, para Fagner, é algo que acontece com muita naturalidade, sem que ele precise parar para se dedicar ao ofício.

“Primeiro, que eu tenho parceiros fortes junto, como o Renato Teixeira, o Zeca Baleiro, o Fausto Nilo. Eu faço as músicas e, na maioria das vezes, não pego nem um instrumento, eu faço de ‘lararará’, ‘lererê’, ‘lururu’, e eles decifram muito bem. Porque eu estou num avião e faço uma música assim, realmente tenho essa facilidade”, descreve.

Apesar de sua intimidade com as palavras, hoje ele geralmente compõe a melodia e manda para seus parceiros musicais criarem a letra. “Eu não escrevo mais como escrevi, muitas vezes. Pego uma música que eu fiz letra e música: ‘P***, eu fiz isso!’. Eu me distanciei muito do fato de escrever, até por conta de tantos parceiros que eu tenho. Ficou cômodo”, admite ele.

“Mas, no caso, eu prefiro ouvir conselho do Roberto a escutar a crítica. Até porque eu me criei ouvindo música popular. Ao chegar no Rio, aí era um outro movimento, era um outro momento, era uma outra poesia, era um outro canto, e eu me coloquei muito dentro disso até os anos 80, falei essa linguagem que eles estavam querendo ouvir”, explica.

A CRÍTICA FAZ AUTOCRÍTICA

Ele conta que o “bicho pegou” em termos de comentários negativos quando ele gravou “Deslizes”, de Michael Sullivan e Paulo Massadas, no álbum “Fagner”, de 1987. “Tive um episódio com o Lobão no restaurante do Nelson Motta, aqui pertinho da minha casa, no Leblon”, recorda ele. O roqueiro tinha dado uma entrevista dizendo que Fagner estava “apelando” ao gravar a música, e ele foi tirar satisfação. Os dois ficaram rompidos por anos. Com a imprensa não foi diferente: na época, os artistas que gravavam a dupla de compositores eram duramente criticados. No entanto, a popularidade dessas canções, em geral, era enorme. Com “Deslizes” não foi diferente: ela é um dos maiores sucessos da carreira de Fagner. O tempo redimiu a canção, assim como seus autores, e alguns dos detratores da época fizeram mea-culpa.

O curioso é que o cantor não queria gravar a música. O álbum já estava praticamente pronto quando Miguel Plopschi, diretor da gravadora RCA que ajudou a alavancar Sullivan e Massadas, entrou no estúdio e mostrou a canção a Fagner. “Eu falei: ‘Miguel, essa não está no roteiro’. E ele insistiu: ‘Mas bota a voz.’ Eu botei, mas certo de que ele iria usar em algum projeto, um disco da dupla, algo assim”, narra o artista. No dia seguinte, ao voltar no local, havia uma faxineira limpando o estúdio e assobiando a música. Ela havia ouvido ele gravando no dia anterior. “Eu falei: ‘Caramba, eu não sou mais dono de mim. Essa música tem que entrar, porque, se essa mulher está cantando, e eu lançar um disco, ela vai procurar e não vai achar. Eu não posso fazer isso.’ E a música foi o que estourou”, diz.

É uma das canções que não podem faltar nos shows do artista até hoje, ao lado de outro grande hit romântico seu: “Borbulhas de Amor”. Lançada no álbum “Pedras que Cantam” (1991), a faixa é uma versão de uma composição do dominicano Juan Luis Guerra, encomendada por Fagner ao poeta Ferreira Gullar. “Eu fiz ele fazer essa porque a crítica ia cair de pau. Eu disse: ‘Só o Gullar pode fazer essa versão e ninguém bater.’ E depois eu confessei para ele, que ficou me olhando p***”, diverte-se Fagner.

Fagner tem uma forte relação com a poesia. Além de ter parcerias com nomes como Ferreira Gullar e Vinicius de Moraes (inclusive uma música inédita), ele musicou poemas de Cecília Meireles, Florbela Espanca, García Lorca, Luís da Câmara Cascudo, Patativa do Assaré, Mário de Andrade e Affonso Romano de Sant'Anna.

“No antigo ginásio, tinha um professor de português muito caxias, chamado João Lima, ele forçava muito a gente com relação à poesia, a decorar, ouvir, ler os poetas. Então me criei lendo e ouvindo poetas”, recorda ele.

Um de seus sucessos, “Canteiros”, esteve no centro de uma polêmica: foi acusado de plágio pelas filhas de Cecília Meireles, teve o disco retirado das lojas (tendo sido relançado mais tarde, com “Cavalo-Ferro” no lugar da faixa proibida) e ficou anos sem poder cantar a música, que foi inspirada no poema “A Marcha”, da poeta. Ele diz que, originalmente, citava a letra como inspirada na obra (“Na época, eu achava que isso podia”) e, em cima da hora, a gravadora não incluiu o encarte com a informação no álbum. “Ficou faltando esse detalhe, que me incomodou e me acompanhou durante toda a vida. Por conta de não ter saído, o mundo desabou na minha cabeça”, reclama.

No disco “Eu Canto — Quem Viver Chorará” (1978) Fagner musicou um poema de Cecília Meireles, “Motivo" (o título do álbum foi dado a partir de um verso dele) e, mesmo com os créditos corretos, a família da autora processou sua gravadora, a Polygram. O trabalho foi retirado das lojas e relançado no ano seguinte sob o nome “Quem Viver Chorará”, com a faixa “Quem Me Levará Sou Eu" no lugar de "Motivo”.

PARCEIROS: UMA LISTA EXTENSA

As parcerias, aliás, são onipresentes na carreira do cearense — na composição e nas gravações. Seu primeiro registro em disco foi o compacto simples “Cirino e Fagner” (1971), ao lado do conterrâneo Wilson Cirino, com as músicas “A Nova Conquista”, de Fagner e Ricardo Bezerra, e “Copa Luz”, de Cirino e Sérgio Costa. Nara Leão participou de seu álbum de estreia, em 1973. No mesmo ano, fez um dueto com Chico Buarque em “Joana Francesa”, de Chico, para a trilha do filme homônimo. Já o compacto “Ney Matogrosso e Fagner” é de 1975 e traz “Postal do Amor" (de Fagner, Fausto Nilo e Ricardo Bezerra) e “Ponta do Lápis” (de Clodoaldo e Rodger Rogério).

Também lançou álbuns ao lado de Luiz Gonzaga (“Luiz Gonzaga & Fagner”, de 1984, e “Gonzagão & Fagner 2 — ABC do Sertão”, de 1989), Zeca Baleiro (“Raimundo Fagner & Zeca Baleiro”, de 2003; “O Show (Multishow ao Vivo)”, de 2004, e “Ao Vivo em Brasília, 2002”, de 2020), Zé Ramalho (“Ao Vivo”, de 2014), Elba Ramalho (“Festa”, de 2021) e Renato Teixeira (“Naturezas”, de 2022, e o recém-lançado “Destinos”). Além disso, tem inúmeros feats com outros artistas, alguns deles registrados no CD e DVD “Amigos e Canções”, de 1998 e 2000, respectivamente.

“Lamento não ter gravado com Elis, que foi a minha madrinha. Mas é possível que a gente faça, eu estou combinando com João Marcello (Bôscoli, produtor musical e filho da cantora) de a gente fazer aquelas gravações”, adianta, em referência aos duetos póstumos possibilitados pela tecnologia.

Zeca Baleiro, que se tornou um parceiro musical recorrente, lembra que conheceu Fagner por meio de dois amigos em comum, ambos letristas: o carioca Sérgio Natureza e o cearense Fausto Nilo, também parceiro frequente. “Depois o visitei em Fortaleza, onde jogamos futebol. Daí já éramos amigos de infância (risos)”, diz o maranhense. “Ele e todos os nordestinos pop dos anos 70 são influências para mim. Mas acompanhei a discografia do Fagner disco a disco, há álbuns sensacionais. O que mais admiro nele como artista é a versatilidade, a inventividade… Mesmo hoje, trabalhando com canção popular romântica ou forró, ele está sempre buscando uma surpresa, um toque novo”, elogia.

O futebol é outra grande paixão sua, também herdada do irmão, Fares Lopes (1934-2004), que até batiza uma copa no Ceará. “Sou craque, eu não tenho a menor humildade”, garante Fagner.

Ele conta com orgulho que já marcou o ponta-direita Cafuringa em um jogo — o que levou a escalar Fagner para jogar na despedida de Garrincha no Maracanã — e que foi convidado para jogar em um time profissional. O cantor e compositor Renato Teixeira atesta: foi o Ubiratan, de Dourados (MS).

“Diz a lenda que, encantado com a performance de Raimundo nas partidas festivas que ele jogava ao lado de craques do calibre de Zico, seu compadre, Pelé e Rivelino, um fazendeiro ofereceu o próprio avião para que ele pudesse jogar o campeonato da primeira divisão do Mato Grosso do Sul sem deixar de cumprir seus compromissos artísticos com o povo brasileiro que o consagrara”, descreve Renato. “As negociações, porém, não evoluíram, e o futebol nacional não pôde contar com o craque cearense na sua gloriosa história. E o Ubiratan de Dourados não pôde brilhar no cenário nacional como merecia, exibindo seu nome mágico e guerreiro para a torcida brasileira. Perdemos nós, amantes do esporte rei, mas ganhou a música, que não abriu mão de um de seus maiores ídolos”, diverte-se.

Para Chris Fuscaldo, Fagner nunca teve o devido reconhecimento por parte da crítica, assim como outros nordestinos contemporâneos dele. “Quem fez bem a eles foi o público fiel que eles foram colecionando ao longo dos anos. O Brasil tem essa cultura do cânone e, se não entrou nesse grupo junto a Gil, Caetano, Chico, Jorge Ben e Milton, não será cultuado, ou tornado cult, como esses sempre foram”, analisa ela. “Acho Fagner um grande compositor, um artista versátil, com uma voz extremamente particular — acho sempre isso um baita diferencial — e uma facilidade muito grande de realizar boas parcerias, mesmo que, muitas vezes, elas acabem em briga, o que também é um traço de sua personalidade”, diz.

Se você pegar o volume de coisa que eu fiz, vai contar na palma da mão o número de pessoas que trabalharam tanto.

E, por falar em parceria, o disco ao lado de Renato Teixeira, “Destinos”, tem participações de Chico Teixeira (filho de Renato), Evandro Mesquita, Isabel Teixeira (atriz e filha de Renato), Roberta Campos, Roberta Spindel e Zeca Baleiro. “Nos entendemos bem e continuamos produzindo. Cantores e cantoras que estejam precisando de músicas feitas com carinho e amor, é só chegar. Temos canções para todos os gostos”, brinca Renato.

FORRÓ DA PAZ

O trabalho mal saiu, e Fagner já está mergulhado em seu próximo projeto: um álbum de forró produzido pelo pernambucano Nando Cordel, com participações de nomes da nova geração, como João Gomes e Zé Cantor, e veteranos como Geraldo Azevedo — com quem gravou “Dona da Minha Cabeça” (de Geraldo com Fausto Nilo). “Depois de 40 anos sem se falar, por efeito de um episódio desagradável que nós vivemos, a gente fez essa, com produção do Robertinho do Recife. Foi muito bacana”, celebra o cearense.

Entre uma incursão no estúdio e outra, criação de novas músicas com os letristas parceiros e apresentações pelo Brasil, aos 75 anos, ao avaliar seus mais de 50 anos de carreira profissional, ele é muito franco.

“Se você pegar o volume de coisa que eu fiz, vai contar na palma da mão o número de pessoas que trabalharam tanto, que estiveram tanto em estúdio, que gravaram com tantos músicos, que gravaram com tantos arranjadores. Quem fez 50 discos? Eu fiz mais, porque eu gravei disco lá fora, participei de discos de projetos… Então, eu vivi intensamente a música. Se era isso a minha função, eu tenho cumprido ela sobrando, entendeu?”, finaliza, aos risos.

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