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Antonio Cicero

a última entrevista

A transcrição do derradeiro papo gravado com o poeta, filósofo e letrista, que nos deixou em outubro. Foi no podcast Palavra de Autor, de Celso Fonseca, e ele comenta letras que criou com a irmã, Marina Lima, além de arte e filosofia

do_Rio

A transcrição do derradeiro papo gravado com o poeta, filósofo e letrista, que nos deixou em outubro. Foi no podcast Palavra de Autor, de Celso Fonseca, e ele comenta letras que criou com a irmã, Marina Lima, além de arte e filosofia

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O poeta, filósofo e letrista Antonio Cicero nos deixou em outubro. Além de uma obra monumental, eternizada na voz da sua irmã, Marina Lima, e de tantos outros que musicaram ou cantaram suas composições, ele também publicou livros e ensaios e manifestou, em entrevistas, o que pensava sobre a arte e a vida. O último bate-papo gravado de que participou foi precisamente com a UBC — um emocionante episódio do podcast Palavra de Autor, criado e apresentado por Celso Fonseca e lançado em 27 de setembro, menos de um mês antes da morte de Cicero.

Arquivo pessoal

Cicero, que também era imortal da ABL

Nesta edição da Revista, apresentamos os melhores momentos dessa conversa, à qual você pode assistir no canal da UBC no YouTube, clicando no link no final desta página.

INFLUÊNCIAS

Eu tive influência de várias áreas, de toda a poesia brasileira, por assim dizer, todas as letras de música. Na realidade, transito com facilidade entre as culturas. Às vezes, a cultura chamada pop é de altíssimo nível. O que me interessa é isso, na verdade. E a cultura chamada erudita, às vezes, nem é de tanto nível. Essas coisas variam muito.

A minha relação com a música vem desde pequeno. Aliás, como quase todo brasileiro, eu acho. Eu ouvia dois tipos de música, o pop, o popular, como todo mundo; e música erudita, porque meu pai adorava tocar discos de grandes compositores clássicos. Eu gostava muito, me habituei muito a ouvir Mozart, Beethoven etc. Mas infelizmente, e acho que foi uma falha minha também, de certa maneira, eu nunca aprendi a tocar instrumento nenhum. E isso foi uma falha na minha educação.

Apreciamos músicas cantadas em línguas que não entendemos. E as letras, mesmo sem que as entendamos, nos emocionam. Isso mostra como a música é fundamental, e a letra é acessória.

Fui me interessando cada vez mais por ler, pela própria poesia, e não me ocorreu que eu pudesse tocar um instrumento. Embora adorasse escutar músicas de todos os tipos. Não tive essa ideia de dizer aos meus pais que gostaria de tocar um instrumento. E eles também não sugeriram, então…

Quando me tornei adolescente, nossa família foi morar nos EUA, em Washington. Meu pai era economista e foi trabalhar no BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento. Minha adolescência inteira eu passei nos EUA por isso, e a música americana também foi muito importante pra mim.

O DEBUT NA CRIAÇÃO ARTÍSTICA

Comigo, a coisa começou da seguinte maneira: a partir de uns 18 anos, eu creio, talvez 16, comecei a escrever o que eu achava que era poesia. Me entusiasmei no primário com poesia, em primeiro lugar quando eu li livros de gramática de escola, e, depois, o “I-Juca Pirama” (poema de Gonçalves Dias). Me deixou absolutamente entusiasmado, me apaixonei pela poesia a partir de “I-Juca Pirama”. A partir daí, comecei a querer escrever poesia também. Claro que nunca publiquei. Um dia, Marina pegou um desses poemas, supostamente poemas, que eu tinha escrito (risos). Eu já tinha 26 anos. Ela, 16 anos, dez anos mais nova, estava aprendendo a tocar violão. Pegou um desses poemas e musicou. Ela acabou gravando, mas, antes disso, outras coisas aconteceram.

Durante o papo com Celso Fonseca, Cicero leu a letra de “Alma Caiada”, o “suposto poema” que Marina musicou sem ele saber:

Alma Caiada

Aprendi desde criança Que é melhor me calar E dançar conforme a dança Do que jamais ousar

Mas, às vezes, pressinto Que eu não me enquadro na lei Minto sobre o que sinto Esqueço tudo o que sei

Só comigo ouso lutar Sem me poder vencer Tento afogar no mar o fogo Em que quero arder

De dia caio minh’alma Só à noite caio em mim Por isso me falta calma E vivo inquieta assim

Só comigo ouso lutar Sem me poder vencer Tento afogar no mar o fogo Em que quero arder

De dia caio minh’alma Só à noite caio em mim Por isso me falta calma E vivo inquieta assim

Havia entre nossos parentes uma tia, a Tia Lea Gadelha, que, na verdade, era também tia de Dedé Veloso e de Sandra Gil. A Marina mostrou a música pra ela, e ela mostrou pra Maria Bethânia. Maria Bethânia adorou a música e gravou. Mas a música foi vetada pela censura, provavelmente pela frase “às vezes pressinto que eu não me enquadro na lei”. Devem ter achado que se tratava da lei de segurança nacional (risos). Teria sido a primeira música da Marina gravada. E eu era fã total da Bethânia, foi terrível pra mim na época. Depois que acabou a ditadura, a música foi gravada pela Marina (e também por Zizi Possi).

A partir daí, a gente inverteu a situação. Comecei a colocar letra nas melodias que a Marina fazia, a gente inverteu completamente. Aí é uma coisa curiosa, porque vários poemas, várias letras, digamos assim, podem até sobreviver sem a música e ser transformadas em poema. Mas algumas dependem totalmente da música, essa é que é a verdade. Nos meus livros de poesia há poucas letras de música, porque grande parte dessas letras só sobrevivem com a música. Eu penso isso, pelo menos, é minha opinião. Algumas eu coloco no livro porque acho que valem, independentemente da música. A música tem uma importância muito grande, maior do que a letra, de maneira geral. Digo isso porque apreciamos músicas cantadas em línguas que não entendemos. E as letras, mesmo sem que as entendamos, nos emocionam. Nós inventamos o sentido das letras que não entendemos. E isso mostra como a música é fundamental, e a letra é acessória, embora possa ser, também, uma obra-prima.

Arquivo pessoal
Ex-diretor da UBC, criador de letras consideradas obras-primas literárias: uma obra que marcou a nossa música
Ex-diretor da UBC, criador de letras consideradas obras-primas literárias: uma obra que marcou a nossa música

PENSAR MUSICAL

Embora eu não tenha aprendido formalmente, eu tenho a música dentro de mim. Por isso sou capaz de fazer as palavras encaixarem nas melodias. Tem poemas meus que foram musicados por outras pessoas. As canções, na minha opinião, ficaram lindas. Não foram feitos para serem musicados, mas ficaram muito bonitos na minha opinião. Muitas das minhas músicas mais famosas foram feitas assim: as pessoas pegaram um poema e musicaram. Agora, a maior parte das minhas músicas, com Marina e outros, a grande maioria, fui eu que botei a letra na música (cuja melodia havia sido escrita antes).

Tem uma música que fiz com a Adriana Calcanhotto, “Inverno”, que acho que tem uma letra que até é capaz de sobreviver sem a música.

Outra das letras que Cicero leu foi a de “Inverno”:

No dia em que fui mais feliz Eu vi um avião Se espelhar no seu olhar até sumir De lá pra cá não sei

Caminho ao longo do canal Faço longas cartas pra ninguém E o inverno no Leblon é quase glacial

Há algo que jamais se esclareceu Onde foi exatamente que larguei Naquele dia mesmo O leão que sempre cavalguei

Lá mesmo esqueci que o destino Sempre me quis só No deserto sem saudade, sem remorso só Sem amarras, barco embriagado ao mar

Não sei o que em mim Só quer me lembrar Que um dia o céu reuniu-se à terra um instante por nós dois Pouco antes do ocidente se assombrar

Não sei o que em mim Só quer me lembrar Que um dia o céu reuniu-se à terra um instante por nós dois Pouco antes do ocidente se assombrar No dia em que fui mais feliz

Sempre gostei das melodias que puseram nas minhas músicas. Não me lembro de não ter gostado. Mas pra mim é difícil julgar, não faço melodia (risos).

O poema vem não sei de onde. Vem de mim, mas não sei de que parte de mim. Toda arte é assim.

FILOSOFIA, POESIA, MÚSICA

Difícil dizer quando a filosofia é necessária pra escrever letras. A filosofia faz a gente pensar, mas são diferentes as formas de pensar fiolósofica e poética. São coisas muito diferentes. Não é a partir de uma ideia filosófica que eu escrevo poema nenhum. O poema parece que vem por si próprio. O grande poeta Ivan Junqueira escreveu um poema dizendo que não é ele quem faz o poema, mas o poema que se faz a si próprio. E é assim, pelo menos pra mim: não decido racionalmente, ele vem não sei de onde. Vem de mim, mas não sei de que parte de mim.

Toda arte é assim, ocorre isso.

Na Grécia antiga, existia música misturada à poesia mais do que entre nós. A primeira poesia grega era toda cantada. Existiam dois tipos de poesia sobre os quais falamos hoje. Uma delas é a épica, de Homero ou Hesíodo, e essa poesia épica era ritmada e cantada e repetida sempre. A Ilíada era sobre a história da Grécia. Odisseia, sobre Odisseu (ou Ulisses), um grande líder.

E a (outra era a) poesia lírica, que vem da palavra lira. Era cantada pelas pessoas que tocavam lira. A Safo era uma grande poeta lírica. Alceu (de Mitilene) era outro grande poeta lírico. Não era escrita. Era decorada.

Na verdade, isso a gente entende bem porque hoje a gente ouve música e rapidamente consegue decorar aquilo e repetir aquilo. Era assim que se mantinha. Quando a Grécia se alfabetizou, então começou-se a escrever. Escreveram-se primeiro os poemas que já estavam decorados. Depois, a poesia de uma maneira geral, sem necessariamente tocar lira. A lira pode ter sido, digamos assim, o instrumento primeiro, mas talvez não o único. E em outras culturas a mesma coisa pode ter acontecido com outros instrumentos, como o violão, por exemplo, em culturas pré-alfabetizadas, ou os instrumentos de percussão…

GRANDES LETRISTAS

Entre meus letristas favoritas, está o Caetano Veloso, que é um compositor total. Mas as letras são extraordinárias, não é verdade? São tantos… Por exemplo, o grande letrista Fernando Brant foi extraordinário. É difícil falar porque há muitos letristas muito bons. Wally Salomão era um grande letrista e foi um dos meus maiores amigos também. Dorival Caymmi, absolutamente genial. Simples, num certo sentido, mas, por outro, uma coisa de uma grandeza… Vinicius de Moraes, maravilhoso. Tanto poeta quanto letrista.

(Neste momento, Celso Fonseca os compara, ao que Cicero rapidamente responde): “Ele (Vinicius) é superior a mim.”

Poetas também temos vários excelentes. O Paulo Henriques Britto é um grande poeta contemporâneo. Tem o Ricardo Silvestrin, um poeta extraordinário.

O rap (tem) algumas coisas (que) me impressionam. Eu teria que ouvir muito mais do que já ouvi. Conheço relativamente pouco. Não conheço suficientemente. Mas eu tenho impressão de que é um campo aberto, e é possível acontecerem coisas maravilhosas também.

Os americanos têm uma quantidade enorme de grandes letristas e escritores que escrevem música. O mundo inteiro, claro. Agora, realmente eu tenho a impressão de que essas culturas que tiveram misturas, mescla de diferentes culturas, como o Brasil e os Estados Unidos também, apesar de todo o racismo que sempre existiu, grande parte da cultura de lá também vem da mestiçagem. Ela é importantíssima para a cultura.

Uma das grandes virtudes do Brasil é a capacidade de ter essa mistura toda, e isso ser uma coisa positiva, ao contrário do que acontece em outros países. Tem gente contra, sempre tem. Tem gente que tem horror a tudo, ao brasileiro profundo…

(Neste momento, Cicero lê a letra de “Brasileiro Profundo”, parceria dele com Arthur Nogueira).

Um brasileiro Profundo É o que sou

Tenho em mim Todas as raças E nenhuma

Tenho em mim Todos os sexos E nenhum

Tenho em mim Todos os deuses E nenhum

Um brasileiro Profundo É o que sou

Tenho em mim Todas as raças E nenhuma

Tenho em mim Todos os sexos E nenhum

Tenho em mim Todos os deuses E nenhum

VIRGEM

(Entre várias de suas belíssimas criações, Antonio Cicero escolhe “Virgem” para destrinchar durante a entrevista).

Arquivo pessoal

Com a irmã, Marina Lima, parceira de arte e vida

A letra tem muito a ver com a relação minha com Marina e com o Rio de Janeiro. Antes de ir para os EUA, nós fomos criados exatamente no Leblon e em Ipanema. Eu fui criado lá, Marina é 10 anos mais moça do que eu e passou mais tempo nos EUA. Ela foi alfabetizada nos EUA. Mas, pra mim, a coisa do Leblon e de Ipanema foi desde a infância. Então, nessa letra eu falo muito dessas coisas e as ligo. Falo, por exemplo, “as luzes brilham no Vidigal e não precisam de você”. A gente via as luzes brilhando no Vidigal, não é? Os Dois Irmãos, que são o morro dos Dois Irmãos, mas também somos nós, eu e Marina. O hotel Marina, havia um hotel chamado Marina… “Os inocentes, esses nem sabem de você nem vão querer saber.” Essa parte engraçada foi o seguinte: quando éramos crianças, eu e meu irmão, Marina ainda nem tinha nascido, íamos à praia, claro, com nossos pais. E eu lembro que era bem garoto, pré-adolescente, eu e meu irmão mergulhávamos e, quando voltávamos, às vezes meu pai apontava pra gente e dizia “os inocentes do Leblon”. Foi muito depois que eu descobri que “Os Inocentes do Leblon” era o título de um grande poema do Drummond, que é bem curtinho, vou lê-lo aqui:

Os inocentes do Leblon não viram o navio entrar. Trouxe bailarinas? trouxe imigrantes? trouxe um grama de rádio? Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram, mas a areia é quente, e há um óleo suave que eles passam nas costas, e esquecem.

Foi a partir daí que eu botei os inocentes do Leblon na letra de Virgem, copiando o Drummond.

Sou louco por Drummond, completamente. Pra mim é o maior poeta brasileiro e um dos maiores do mundo, evidentemente.

Eu, quando adolescente, via o Drummond passar, ficava olhando pra ele, maravilhado. Mas nunca tive coragem de abordá-lo.

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