por_Leonardo Lichote • do_Rio
Maria Beraldo descreve “Colinho”, seu segundo e recém-lançado álbum, como um “rolê de skate”, com sua sonoridade que trafega por canto falado agressivo, free jazz, lirismo, sexo sem disfarce, arranjos de cordas delicados, pop e experimentalismo. “Ele passa aqui, vai ali, é meio espalhado”, explica a artista. “Talvez tenha o desejo de ser um fio entre lugares em que eu transito. Por exemplo: uma vez, estava no festival Novas Frequências e, no mesmo dia, vi os doidos do free mais camerístico e terminei num grime à noite. Pensei: ‘Cara, isso aqui faz a minha cabeça demais’. Tem muitos universos que eu frequento e que eu amo igualmente.”
O rolê da artista ao longo de sua carreira é vasto. Com formação de clarinetista, ela tem colaborações com Arrigo Barnabé, já se lançou sobre a obra de Moacir Santos e Dorival Caymmi ao lado do grupo Quartabê, compôs trilhas para peças de Felipe Hirsch e também para cinema. De alguma maneira, isso aparece diluído em “Colinho”, em meio a muitas outras investigações.
É curioso, portanto, que Maria escolha um samba como canção que sintetiza o álbum — mais do que isso, a única das 11 faixas que não é assinada por ela, só ou com parceiros. “Minha Missão”, clássico de João Nogueira e Paulo César Pinheiro sobre o ofício do cantor, é para ela uma afirmação política que carrega muito das ambições de “Colinho”. No disco, ela grava com o espírito de roda, com o cavaquinho e o tantã de Rodrigo Campos e o sax alto de Thiago França — artistas que, como ela, amam e praticam o samba, mas transitam com liberdade por mil formas de fazer música.
“Essa canção explica realmente por que eu canto, e tem um lugar político aí. A gente está num momento em que o mercado domina tudo. Mas não acho que ninguém faça música por dinheiro. As pessoas cantam porque elas precisam. É político porque a música é nossa, é compartilhamento, é ritual”, diz Maria. “O verso mais forte pra mim é ‘Quando eu canto, a morte me percorre’. Eu inclusive tinha medo de gravar essa música por causa disso. Mas é um disco de transformação, né? Eu me entender como uma pessoa não binária implica em matar uma pessoa que eu esperei que eu fosse. Tem um luto, e a música é muito importante no luto. Estou morrendo e nascendo no disco”.
DOR, MELANCOLIA E PAZ
A fala da artista toca num ponto central de “Colinho”. Em seu disco de estreia, o elogiado “Cavala”, de 2018, ela afirmava sua saída do armário, assumindo sua sexualidade publicamente. Agora, seis anos depois, ela elabora suas reflexões sobre sua identidade de gênero não-binária. Nesse sentido, o espalhamento das sonoridades do disco — produzido por Maria e Tó Brandileone — reflete isso, em suas fronteiras expandidas e indefinidas.
“Todas as nossas relações sociais e políticas passam pelas relações de sexo. Os contratos são todos sexuais no fundo”, defende Maria. “Uma mulher falando do seu desejo, ou mesmo falando de sexo, ou mesmo falando putaria, isso é uma fricção social. E também tem a afirmação de um corpo de uma pessoa não binária, que é a maneira como eu venho me entendendo. Tem gente morrendo porque é lésbica, porque é gay, porque é não binária, porque é trans. É uma violência descomunal que sinto no meu corpo. Mas o ‘Cavala’ é mais doído. O ‘Colinho’ tem seus momentos de dor e melancolia, mas eu acho que tem uma revanche, uma paz. E isso é uma arma política, você encontrar paz estando numa posição como essa.”
A forma como Maria usa a voz no disco também é fruto de seus movimentos com relação à sua identidade de gênero. Ela conta que não queria ter uma “voz de garota” — e, indo além, não queria ser percebida como “fofa”. A sonoridade do disco é construída ao lado de um time de músicos que inclui o baterista Sérgio Machado, o pianista Chicão e os baixistas Fábio Sá e Marcelo Cabral. Os Fita fazem uma participação especial em “Colinho”, tocando kalimba, bateria eletrônica, samplers e efeitos. A cantora ainda divide os vocais em três faixas com os convidados Zélia Duncan (“Matagal”), Ana Frango Elétrico (“Masc”) e Negro Leo (“Quem Eu Sou”).
“Eu estava encontrando viradas de sonoridade em tantos aspectos no instrumental, quis levar isso pra voz”, conta. “Investiguei isso com a tecnologia, afinando a voz pra baixo. Essa associação é barata, da voz grave como masculina e da voz aguda como feminina. Mas eu estou dentro dessa sociedade, então claro que o meu coração bate de um jeito, se identifica com isso. Tem algumas vozes muito comprimidas, tem vozes afinadas artificialmente. E, quando estou no mais agudo, editei para que não parecesse natural, fluido. Tem bastante pesquisa com a voz falada também. Estava um pouco cansada de mim, do jeito que eu compunha, da melodia, enfim.”
O UNIVERSO DE MARIA
“Minha catarse com a Zélia foi quando ela fez ‘Totatiando’, dedicada ao [Luiz] Tatit. Eu pirei muito nesse espetáculo, com os arranjos superminimalistas, ela como uma puta atriz. Fiquei apaixonada, fui ver sete vezes”, lembra Maria. “Quando fiz ‘Masc’ pensei na hora que queria cantar com Ana. Acho ela foda, ela também é uma pessoa não binária, e temos uma puta conexão. Tem um lugar da comunidade cantando junto. E o Leo é um dos artistas mais incríveis que a gente tem. Eu tinha uma música já pronta, mas ela era muito Clube da Esquina. Queria chamar alguém para fazer essa letra que fosse tirar o tapete desse Clube da Esquina. O Leo fez isso. Queria que ele cantasse comigo, porque o Léo é muito lírico, ele tem essa fricção do lírico com a violência, com a política.”
Passar o olho pelo título das canções do disco fornece pistas nítidas do universo que Maria aponta em suas falas, de autoentendimento, sexo, política e psicanálise: “Ninfomaníaca”, “I Can’t Stand My Father Anymore”, “Masc”, “Quem Eu Sou” e mesmo “Colinho”. A faixa-título desloca a expressão, que sugere acolhimento (mais ainda no diminutivo), para um lugar de putaria: “Me leva no dedo molhado o cheiro, o gosto da minha/ Viaja esse mundo lembrando do peso da minha bunda no teu colinho.”
É um disco de transformação, né? Eu me entender como uma pessoa não binária implica em matar uma pessoa que eu esperei que eu fosse.”
Maria Beraldo“O disco, justamente por falar de sexo desse jeito, ele dá colo à comunidade toda das queer”, analisa Maria. “Ele dá colo no momento em que a gente se vê e entende que a gente existe através dos outros. Eu sou um desses outros. Então a gente vai criando uma comunidade onde a gente existe. Isso fode com quem está contra a gente. E fode, no bom sentido, com quem está sendo acolhido. Porque é claro que o colo da putaria também acolhe. Essa é uma palavra que tem esses dois lados, o acolhimento e a sacanagem.” •