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Tom

30 anos depois, ainda mais eterno

Ruy Castro, Nelson Motta e outros especialistas explicam por que o maestro soberano continua tão relevante e ainda carece do reconhecimento exato por seu papel na difusão da música brasileira

por_Eduardo Fradkin do_Rio

Ruy Castro, Nelson Motta e outros especialistas explicam por que o maestro soberano continua tão relevante e ainda carece do reconhecimento exato por seu papel na difusão da música brasileira

por_Eduardo Fradkin do_Rio

Na recém-lançada coletânea de crônicas "O Ouvidor do Brasil: 99 Vezes Tom Jobim", o escritor Ruy Castro atribui o epíteto do título à capacidade do maestro de "ouvir o país, do pio do inhambu aos gritos da floresta sendo abatida a machado ou serra", o que lhe permitiu pressagiar temas importantes como a defesa da ecologia. Neste mês de dezembro, no qual se contam 30 anos de sua morte, "Tom parece fisicamente vivo e ativo", como sustenta Ruy na primeira das 99 crônicas, "enquanto tantos de seus parceiros e contemporâneos foram reduzidos a referências nos livros de História.”

Quando se escuta Tom Jobim, o mundo parece parar. Ninguém se atreve a corrompê-lo, a transformá-lo em rock ou funk. Isso é a permanência.

Ruy Castro, escritor

O ritmo da vida, no entanto, mudou muito desde 1994, ficou bem mais acelerado. Já não é o mesmo compasso da bossa nova. Por que, então, a presença de Tom ainda é tão forte no nosso mundo?

"É inacreditável, mesmo, não? A música, como a conhecemos no século XX, acabou. Não há mais melodias originais, as harmonias se reduziram a zero, o ritmo ficou agressivo e ensurdecedor, e as letras são de uma banalidade ginasiana. Até as escolas de samba ficaram aceleradas. Não se conhecem mais músicas francesas, argentinas, portuguesas, italianas. E, no entanto, quando se escuta Tom Jobim, o mundo parece parar. Ninguém se atreve a corrompê-lo, a transformá-lo em rock ou funk. Isso é a permanência, talvez a eternidade", responde Ruy, em entrevista à Revista.

O dramaturgo e diretor teatral Pedro Brício, que assina com Nelson Motta o espetáculo "Tom Jobim Musical", conta que se surpreendeu ao pesquisar a vida do biografado e constatar que, durante alguns anos, ele se desdobrara para sobreviver como artista.

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Um show de Tom no festival de Montreux em 1986

"Eu não tinha noção de que ele havia se casado e ido morar na casa dos sogros, ou o tanto que ele trabalhava, tocando na noite e compondo de dia. Ele era workaholic, e sua grande preocupação era trazer um dinheirinho para casa. A minha geração conheceu o Tom já muito bem-sucedido. Então, essa fase inicial dele era desconhecida para mim", diz Pedro.

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foto_Arquivo_Instituto Tom Jobim

Tom nos anos 1950

Um grande impulso para o "dinheirinho" virar renda estável foi o famoso show com a nata da bossa nova no Carnegie Hall, em Nova York, em novembro de 1962. Mas o próprio músico precisou de um impulso para comparecer a esse evento histórico, já que, aos 35 anos e pouco experiente em viagens, morria de medo de avião e encasquetara que a aeronave estava fadada a cair. O temor de voar perdurou até o fim de sua vida. Ironicamente, seu nome acabaria rebatizando, numa homenagem póstuma (em 1998), o aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro.

"Foi o (escritor) Fernando Sabino quem o convenceu a embarcar para o Carnegie Hall", lembra Pedro Brício.

Essa e tantas outras contradições que se emaranham na biografia de Tom são também exploradas por Ruy Castro em sua obra. Ele argumenta que o saudoso amigo musicou as paisagens naturais e a fauna do Brasil, ao mesmo tempo em que "compôs uma sinfonia da metrópole" e "urbanizou as harmonias", e cita um comentário melancólico do artista: “toda a minha obra é inspirada na Mata Atlântica... os 5% ou 7% que sobraram dela."

Por sua vez, Nelson Motta conta que, ao escrever o roteiro do seu musical, chegou à conclusão de que o grande antagonista do maior gênio da música brasileira foi... o Brasil.

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foto_Arquivo_Instituto Tom Jobim

Em foto sem data nos anos 60

Ele recorre a uma máxima do próprio Jobim — "No Brasil, sucesso é ofensa pessoal" — e recorda ocasiões em que o mestre da bossa nova foi maltratado por seus conterrâneos por puro complexo de "vira-latismo": foi acusado de ter se vendido aos americanos quando "The Girl from Ipanema" venceu o Grammy de 1965 e quando cedeu a canção "Águas de Março" para uma campanha da Coca-Cola.

"Tom era um homem amado pelas pessoas, mas seu antagonista foi o Brasil, que foi o mesmo antagonista da Carmen Miranda e, em certa medida, é o da Anitta, hoje em dia. É um rancor com o sucesso de brasileiros que vão para fora. Isso revela um eterno complexo de inferioridade diante do estrangeiro. Ele dizia que o brasileiro ama o fracasso. Quando a pessoa fracassa e morre, aí vêm as homenagens. Aí, vira artista injustiçado. É um provincianismo em último grau. Acontece o mesmo com a Anitta, hoje, de quem se diz que canta pela bunda ou que comprou a sua carreira", compara Nelson.

O pesquisador musical Rodrigo Faour também elege como tema crucial, no debate sobre a relevância do legado de Tom Jobim, a enorme ingratidão que vem queimando o filme dos brasileiros desde a época da Rolleiflex de "Desafinado".

Reprodução Documentário "Elis & Tom"
Com Elis, durante a gravação do mítico disco de 1974
Com Elis, durante a gravação do mítico disco de 1974

"Como historiador de música, eu acho que mais importante que falar do folclore em torno de Tom é reconhecer uma coisa crucial: foi graças ao Tom Jobim, ao caminho que ele abriu, que a música brasileira foi inserida no mundo. Isso parece um clichê, mas as pessoas esquecem. O brasileiro adora meter o pau na bossa nova. Agora virou mania dizer que a bossa era racista, que era isso ou aquilo. Antes do Tom, houve Carmen Miranda e Leny Eversong, que fez vários shows em Las Vegas e na Europa. Mas ela não podia cantar música brasileira, porque era uma coisa exótica que ninguém entendia. Ela teve que triunfar cantando em outros idiomas, em inglês e, às vezes, francês, contextualiza Faour, concluindo: "O brasileiro tem a mania infeliz de diminuir Tom Jobim, de fazer crítica porque ele não veio do morro, essas bobagens. Mas ele abriu caminho para os artistas da periferia que hoje transitam pelo mundo.”

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foto_Reprodução

Nos anos 90, no Rio

No Grammy de 1965, além de a canção "The Girl from Ipanema" ter levado o gramofone de gravação do ano, o disco "Getz/Gilberto", no qual Tom participara ao piano, ficou com o de melhor álbum. Três anos depois, em 1968, lá estava ele de volta à cerimônia do Grammy, graças ao disco "Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim", lançado no ano anterior. Desta vez, porém, perdeu o título de álbum do ano para o clássico dos Beatles "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band".

Não se sabe se o quarteto de Liverpool contou com a inesperada torcida de João Gilberto, mas é uma possibilidade que se insinua a quem lê o relato de Ruy Castro sobre a parceria fonográfica entre Tom Jobim e o cantor de "My Way"... que, apropriadamente, fez as coisas do seu jeito.

"Ao ouvir a notícia, João Gilberto não acreditou: Frank Sinatra convidara Tom Jobim a fazerem um disco juntos — e Tom não o chamara para participar. Não era possível", inicia Ruy, apresentando uma justificativa em seguida: "Como Tom poderia chamar João Gilberto? O disco não era dele, era de Sinatra. Além disso, se o dono do disco é Frank Sinatra, quem precisa de outro cantor? Para aumentar a agonia de João Gilberto, Sinatra dissera a Tom que o queria ao violão, não ao piano.”

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foto_Arquivo_Instituto Tom Jobim

Com Frank Sinatra: disco gravado juntos nos anos 60

Brasileiro tem a mania infeliz de diminuir Tom Jobim, de fazer crítica porque ele não veio do morro, essas bobagens. Mas ele abriu caminho para os artistas da periferia que hoje transitam pelo mundo.

Rodrigo Faour, jornalista e pesquisador musical

A história toma um rumo divertido quando o escritor evoca um episódio que envolvera os dois músicos brasileiros e o saxofonista americano Stan Getz: "Em 1963, durante a gravação do LP 'Getz/Gilberto', João chamou Stan Getz de burro várias vezes e, quando Getz perguntava a Tom o que João estava dizendo, era obrigado a mentir: 'João disse que é isso mesmo, Stan, que está ótimo!'".

Daí, o cronista conclui que Tom salvou João Gilberto ao não tê-lo arregimentado para o disco de Sinatra: "Imagine se João desaprovasse a inflexão, a divisão rítmica ou qualquer coisa do homem e, entredentes, o chamasse de burro. Os microfones captariam aquilo, e como seria? Frank poderia mandar seus amigos italianos levarem João lá fora e lhe quebrarem os dois braços. E como ele iria tocar 'O Pato' sem braços?".

Entre as várias anedotas que se contam a respeito de Tom, contudo, há aquelas que são versões romanceadas de fatos reais. Como exemplo, Ruy Castro cita a gênese de "Garota de Ipanema", que, diferentemente do que reza a lenda, não foi composta instantaneamente por Tom e o poeta Vinicius de Moraes numa ocasião em que os dois bebericavam no bar Veloso e viram a musa inspiradora (Helô Pinheiro) passar pela rua.

"Tom compôs a música ao piano em seu apartamento, na rua Barão da Torre, e Vinicius escreveu a letra, no de Lucinha Proença, sua mulher, no Parque Guinle, onde ele estava morando", esclarece o escritor.

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foto_Arquivo_Instituto Tom Jobim

Com Vinicius: um de seus maiores parceiros

Algumas histórias contadas no livro foram vivenciadas pelo próprio autor, que conheceu Tom em março de 1968, quando foi entrevistá-lo para a revista "Manchete". Passou 20 anos sem vê-lo, até reencontrá-lo em março de 1988, na (churrascaria e casa noturna) Plataforma, quando foram reapresentados por Ronaldo Bôscoli. Ali, começou a amizade.

"Pelos seis anos seguintes, estive com ele no Rio, em São Paulo e em Nova York, ao vivo, por telefone e por e-mail. Falava pouco de música, mas, quando falava, acho que gostava de conversar com alguém com quem ele podia falar de George Gershwin, Cole Porter, Irving Berlin. Na minha entrevista com ele para a 'Playboy', fez confissões pessoais que nunca tinha feito a ninguém. Certa vez, fui encontrá-lo na casa dele, no alto do Jardim Botânico. Era bem cedo, e ele desceu de carro comigo para tomar café na Padaria Rio-Lisboa, no Leblon. Ele era assim", conta Ruy à UBC.

Uma das anedotas que Ruy protagonizou com o maestro se deu quando os dois foram à quadra de uma escola de samba. "Fomos juntos à Mangueira na noite da escolha do samba, e foi engraçadíssimo, porque o presidente da escola anunciou ao microfone: 'aqui, do meu lado, o Ruy Castro, autor do livro em que se baseia o nosso enredo! E, aqui, também do meu lado, o não menos famoso Antonio Carlos Jobim!'", lembra Ruy.

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